ARTIGOS
Quando ter um filho leva a uma tempestade de sentimentos
Em qualquer período da nossa existência pode acontecer a doença mental. Contudo esta é mais provável nas alturas de grandes desafios (sociais, mentais e / ou fisiológicos) como são os de transição entre estados de maturação. Em alguns de nós é mais difícil a puberdade, a passagem para a vida adulta (no seu processo de autonomia) e envelhecer (na adaptação a uma perda de capacidades físicas e de exigências, mesmo sociais). A mulher tendo o privilégio de poder gerar uma vida enfrenta pelo menos mais dois períodos críticos: o da gravidez e parto e o da menopausa (na qual tal privilégio lhe é tirado).
A gravidez leva geralmente a um bem estar psicológico enquanto o corpo se modifica e “cede”. O nascimento do filho leva a enfrentar uma nova realidade: a simbiose dos dois seres, mãe e filho, deixa de ser implícita para passar a ter de ser explicita. O “jogo” passa a ser inter-activo. Tal facto exige da mulher uma excepcional abnegação e entrega, levando-a a sucessivos movimentos de abdicação de si própria. A “Tristeza da maternidade” ou “Post-partum blues” é um distúrbio do humor que consiste em labilidade emocional, frequentes sentimentos de tristeza ainda que ligeira, de desamparo e crises de choro. Tais episódios são geralmente de curta duração (de cerca de uma semana) e aparecem geralmente após o 3º dia a seguir ao parto. Esta situação observa-se em cerca de 50 a 80 % das mulheres. É provável que a sua origem esteja também ligada às alterações hormonais que ocorrem neste período. Com efeito, este distúrbio é mais frequente nas mulheres com história de síndroma pré-menstrual (sensação de malestar físico e psicológico que se inicia geralmente com a ovulação e se agudiza poucos dias antes do período menstrual).
Embora muito menos frequente (de 1 a 2 em cada 1000 partos) pode acontecer que a mulher que teve um filho desenvolva um quadro de depressão grave que pode incluir diminuição de energia, perda de auto-estima, irritabilidade e sentimentos incapacidade e mesmo de culpabilidade. Nalguns casos a sintomatologia psicótica é mais severa e a mãe pode sentir que não se interessa pelo bébé, que quer mal tanto a si como ao recém-nascido. Esta sintomatologia pode incluir ideias delirantes de que o bébé tem anomalias graves, não nasceu ou de que está morto. Quando existem alucinações a mãe pode “ouvir” vozes que lhe ordenam para fazer mal ao bébé. O suicídio pode ocorrer nas psicoses puerperais.
Se na situação de “Post-partum blues” é possível encontrarmos alguma lógica antropológica na medida em que a mãe se recolhe e tenta compensar os sentimentos de tristeza e de desamparo por um reforço da sua ligação ao bébé, já na situação de depressão grave e de psicose puerperal tal não é possível e tais situações têm de ser encaradas como patológicas. Com efeito os “Post-partum blues” evoluem geralmente para a completa normalidade ao fim de sete a dez dias exigindo apenas alguma vigilância. Já a depressão grave deve ser tratada com o apoio familiar em ambulatório recorrendo ao uso de antidepressivos sedativos e apoio psicoterapêutico. A psicose puerperal além da instituição de terapêutica psicofarmacológica, requer a hospitalização como medida de prevenção do suicídio e do infanticídio. A importância do diagnóstico e do tratamento precoce é ainda importante por se verificar que o prognóstico é favorável quando assim acontece. Pelo contrário quando o diagnóstico e o tratamento da psicose puerperal tardam, além dos riscos inerentes, verifica-se uma maior tendência para a cronicidade de resistência à terapêutica.
Assim o despiste, durante a gravidez, de factores de risco para desenvolver uma psicose puerperal deveriam ser sistematicamente pesquisados. Entre estes estão naturalmente os antecedentes pessoais de doença psiquiátrica mas ainda outros factores como:
- falta de motivação ou sentimentos ambivalentes em relação à gravidez;
- precário suporte socio-económico;
- antecedentes de perda precoce (p. ex: perda da mãe na infância);
- conflitos de identidade sexual;
- situação de conflito grave quer conjugal, quer familiar e a ausência física ou emocional do pai durante a gestação.
Vale a pena acrescentar que as situações descritas têm sido sub-diagnosticadas e que uma maior sensibilização pode realmente fazer toda a diferença em termos de evolução e prognóstico.
António Sampaio
Assistente Graduado de Psiquiatria do H.J.M.