925 316 585 (chamada para rede móvel nacional) geral@egoclinic.pt

ARTIGOS

O Cérebro, a Mente e os Mitos

by Mar 11, 2006

Dr. António Sampaio in BIPOLAR nº 29 – Revista da ADEB
 

A afectividade humana é tipicamente ambivalente. Deus e diabo coexistem nos sentimentos que temos em relação aos outros. Na religião a separação das águas é mais fácil. Em todos os movimentos psicológicos do Homem alguma ambivalência é tolerada até certo ponto. Há no choro da criança quando vê afastar-se a mãe, o desejo de a ter de volta e a zanga por tê-lo abandonado. Esta tristeza é algo muito próprio da espécie e faz um apelo ao afecto do que se ausentou ou ao de outros que o substituam. Em qualquer caso impede a solidão. Privado do afecto desejado o Homem “abraça” e “agride” o que vem ao seu encontro. Se só, fará o mesmo em relação a si próprio. Neste caso, incapaz de expandir a sua revolta, esta vira-se contra si próprio e inevitavelmente causará algum dano. É que, se numa perda é o mundo que nos parece mais pobre e vazio, noutra, somos nós que nos sentimos mais pobres e vazios. Muitas vezes, quando o Homem perde o “objecto” amado, esta perda produz efeitos no próprio “Eu”. Tendo em conta a omnipresente ambivalência, o ódio pelo “objecto” perdido “ataca” parte do “Eu” identificada com o “objecto”.

A vida do Homem é muito provavelmente um somatório de perdas: a perda do meio uterino, a perda do seio, a perda da infância, da juventude … A última perda é a perda da vida. Nesta, toda a existência recai nos outros. A “Alma” sairá do corpo e fundir-se-á com o divino ou seja com o “Superego” colectivo.

Em todos os processos de perda ao longo da evolução libidinal, alguma parte recai sobre o “Eu”. A ” modelagem” que vai sendo feita a nível cerebral dotará o Indivíduo de “meios” para fazer frente às perdas futuras. Quando o processo de perda é bem elaborado, as “feridas” daí resultantes são saradas de forma a que se possa investir de novo afectivamente. Uma boa “plasticidade” cerebral levará a que o Indivíduo restabeleça vínculos com o mundo exterior e com a imagem do “objecto” perdido.

Se a perda não consegue ser bem elaborada dará origem a “defesas” isto é a “cicatrizes” mais ou menos extensas que perdurarão no tempo. Vários factores podem concorrer para que tal aconteça.
Alguns deles serão seguramente genéticos e terão que ver com a vulnerabilidade a factores stressantes ou mesmo com a probabilidade de exposição a acontecimentos de vida constituindo factores de risco de gerar depressão, (é particularmente o caso dos acontecimentos de vida que são directamente ou indirectamente influenciados pelo “Eu” na sua interacção com o mundo). Assim, o risco de doença depressiva estará ligado à susceptibilidade genética e à probabilidade de exposição a factores de risco ambientais, sendo que esta probabilidade depende em parte daquela.
Outros, estarão ligados à quantidade e qualidade dos acontecimentos de vida potencialmente geradores de stress. A maioria dos estudos aponta para que um excesso de perdas esteja relacionado com o desenvolvimento da doença depressiva.
Stress significa um “esforço” do organismo em manter a homeostase quando exposto a forças geradoras de desequilíbrios (Cannon 1929).

Os acontecimentos de vida que levam a uma perturbação na homeostase psíquica podem ser externos ou internos e ter que ver com perdas várias: de entes queridos, de capacidades físicas, de respeitabilidade, de auto-estima, etc. Claro que os estados depressivos “favorecem” o aparecimento de acontecimentos de vida negativos e assim contribuir para certa cronicidade da perturbação.

De referir que alguns estudos relacionam a génese da doença depressiva mais com o stress crónico que com os acontecimentos traumáticos agudos (Brawn e Harris, 1978; McGonagle e Kessler,1990). A forma como as “dificuldades” crónicas e os acontecimentos agudos concorrem para a génese de uma perturbação depressiva não é clara. Para alguns, quando estes factores ocorrem em conjunto o risco de desenvolver depressão aumenta dez vezes em comparação ao risco em Indivíduos não expostos a nenhuma das situações ( Van de Willige e col., 1995). Para outros porém, o stress crónico levaria a uma redução dos efeitos emocionais do stress agudo ( McGonagle e Kessler, 1990). Há realmente casos em que a adversidade crónica torna o Indivíduo mais “capaz” a enfrentar uma adversidade aguda. Mas também há casos em que esta mesma situação leva ao “colapso” emocional. É o factor da individualidade que está em causa. Cada homem é o somatório de uma miríade de factores filogenéticos e ontogénicos que fazem dele um fenómeno histórico-biográfico único. Contudo, alguns factores de vulnerabilidade podem ser apontados. Um deles é a perda da mãe antes dos 11 anos de idade, o que vem de encontro à teoria de vinculação de Bowlby (1988). De facto, estudos posteriores apontam que as perdas e as adversidades vividas precocemente constituem factores de vulnerabilidade à doença depressiva.

Como já referido, a genética é, na doença depressiva, um factor de vulnerabilidade relevante. Estudos familiares apontam para um risco de doença nos parentes em 1o grau de pessoas com doença depressiva 2 a 4 vezes mais elevado em comparação com a população em geral ( Rice e col., 1987; Mc Guffin e col.,1988; Sullivan e col.,2000). Contudo, há que ter em conta que os factores genéticos deverão, no caso da doença depressiva, estar muito associados aos efeitos do ambiente.

Do ponto de vista bioquímico têm sido encontradas várias alterações nas perturbações do humor. Em relação à doença depressiva e genericamente podemos falar em défices funcionais relativos à serotonina (5-HT) e dopamina (DA). Em relação ao sistema serotoninérgico têm sido relatadas alterações quer ao nível dos metabolítos quer ao nível dos receptores. Como certas substancias farmacológicas que actuam especificamente neste sistema têm efeitos antidepressivos é de postular que as perturbações a nível serotoninérgico representem um papel na patofisiologia da depressão. Contudo, parece que as perturbações a nível dos sistemas das catecolaminas estão mais relaccionados com “estados” do que com a patologia propriamente dita (Higley e col.,1992; Mehlman e col., 1994 ).
Mais intrigantes são os resultados dos estudos do sistema noradrenérgico (NA). O stress parece desencadear um aumento da produção da hormona de libertação da corticotrofina (CRH) no hipotálamo, activação do eixo hipotálamo-pituitária-supra-renal (HPA) e consequente activação no sistema NA. Tais alterações a nível da neurofisiologia poderão ser a “base” de certas formas de depressão.

Os estímulos psicológicos levam a uma activação neuronal a nível límbico-cortical, especialmente dos circuitos na amígdala, no hipocampo e no córtex frontal. O stress leva a uma libertação de ACTH que por sua vez leva à produção de cortisol pelas supra-renais. Ora, a hiper-cortisolemia quando persistente pode levar a lesão no hipocampo.

Do ponto de vista neuro-estrutural vários estu- dos revelaram diminuição do volume do hipocampo em pessoas com doença depressiva (Sheline e col.,1996; Mervaala e col., 2000; Vythilingam e col., 2002.). Uma hipótese possível é que esta diminuição seja devida a hipercortisolémia por stress prolongado. Para alguns (Axelson e col., 1993), tal diminuição do volume do hipocampo está relacionada com a duração da sintomatologia depressiva e com o número de hospitalizações. Mas há mesmo estudos que referem uma diminuição do comprimento dos dendritos nos neurónios do hipocampo relacionada com o stress prolongado (Magariños AM, McEwen BS. 1995).

Contudo, é necessário ter em conta que a plasticidade cerebral e muito particularmente a plasticidade do hipocampo é muito maior do que há uns anos se pensava. Mais do que isso, estudos revelam que existe a possibilidade de que a neurogénese, o surgimento de novos neurónios, ocorra mesmo no cérebro adulto (Eriksson PS, Perfilieva E, Bjork-Eriksson T, e tal. 1998) particularmente em certas áreas que incluem o hipocampo. Estes achados vêm por em causa o antigo “pilar” das neurociências que postulava que os mamíferos nasciam com o número de neurónios que apenas poderiam vir a diminuir ao longo da vida: “…once the development was ended, the founts of growth and regeneration of the axons and dendrites dried up irrevocably. In adult centres the nerve paths are something fixed, ended, immutable. Everything may die, nothing may regenerate.” ( Santiago Ramon y Cajal (1852-1934).

As terapêuticas com o uso de antidepressivos actuam não somente a nível bioquímico (na actividade monoaminérgica) mas muito provavelmente também a nível da neurogénese particularmente a nível do hipocampo (Santarelli L, Saxe M, Gross C, e tal., 2003). É razoável admitir que outras intervenções terapêuticas, cognitivo-comportamentais e outras psicoterapias, possam também levar a uma “cicatrização” das “feridas” criadas por vivências negativas prolongadas.

Assim, há hoje que pensar que o cérebro é um órgão extraordinariamente dinâmico e que tem uma plasticidade que abrange uma modulação dendrítica e mesmo neuronal que lhe confere uma potencial capacidade de “regeneração” .Tal “regeneração” aumenta a responsabilidade de intervenção terapêutica. Mais do que isso, revela ao Homem que é cada vez mais responsável pelo seu próprio futuro, que das atitudes que tomar hoje dependerá o Homem de amanhã.

Em suma, todo o investimento vale a pena e a desistência não tem qualquer defesa científica.

 

António Sampaio Psiquiatra do H.J.M.
Mestre em Neurociências pelo Instituto de Psiquiatria de Londres