ARTIGOS
Um Olhar – Fragmento de uma Emoção Inteira
É para os olhos que olhamos primeiro e mais tempo.
Desde logo porque assim observamos o outro e certificamo-nos da sua posição em relação a nós. Eternamente inseguros, tentamos prender o olhar do outro no nosso para sentirmos que o nosso conteúdo, e não tanto a forma, é valorizada prioritariamente. Queremos continuar a acreditar que somos, acima de tudo, intelecto. De facto, as crianças ainda pouco contaminadas com conceitos e crenças que o homem impõe a si mesmo olham-nos de forma mais igual e detêm-se tanto a observar a nossa mão como o nosso nariz. Também não têm medo de serem olhadas e mostram-nos as palmas das mãos como que surpreendidas por insistirmos tanto em olharmos para os olhos uns dos outros. Quando estamos perante alguém realmente deprimido podemos admirar-nos porque não choram os olhos. Realmente no doente deprimido é todo o corpo que se entristece de igual modo. Neste estado o indivíduo já desistiu de comunicar pelo olhar. Mais do que procurar os olhos do outro, olha o seu corpo e estranha-o. A diferença que nota agora em si não é tanto nos olhos mas em toda a sua corporalidade e energia. Outra estética se anuncia onde a beleza e a fealdade deixam de ser as referências. Toda a expressão artística está agora inibida. O deprimido apenas encontra fragmentos dos seres amados. Sente o caos, a destruição e muitas vezes a morte. O seu desespero parece ser irremediável.
Provavelmente é nas situações limite de tristeza e de euforia que o homem se aproxima mais da sua raiz antropológica e é, como as crianças, menos sociável e mais desconcertante. O doente bipolar revive as suas emoções mais precoces mas já não encontra o seio reconfortante. Em desespero sente o vazio apoderar-se de si e o tempo a tornar-se imenso. Como a criança, não se sente nem jovem nem velho, mas eterno na sua debilidade ou na sua força. Apercebe-se, como não conseguem os outros, quão pequena, quão simples é a forma que o homem dá às emoções. Admira-se o doente com o que faz transformar um olhar noutro, com o que faz rir ou chorar. Mas ao mesmo tempo o doente tem saudades dessa simplicidade de sentimentos que norteiam as pessoas ditas normais.
Ao sair do estado mórbido o indivíduo vai recriar o seu mundo interno, reunir as peças e incutir vida aos fragmentos mortos. Irá contudo, ver o mundo como alguém que regressa de uma outra dimensão que não esquecerá. Por vezes sente necessidade de exorcizar o mundo fantasmagórico onde esteve. A mensagem captada pelo público é a de que apesar de tal mundo estar muito, demasiado, perto o “lado de cá” sobrevive.
Mais do que tudo, a pessoa que esteve doente sente a necessidade de fixar o mundo reencontrado e das mais diversas maneiras, tenta registá-lo. A arte surge também como uma tentativa de prevenir novos estados em que o mundo perde o sentido e a harmonia. Mais do que as outras, as pessoas que para lá do mundo estiveram conseguem representá-lo de forma total, completa e unificada.
Por vezes voltam a fixar o olhar do outro mas apreciam-no e recordam-no, para além de o procurarem entender.
Dr. António Sampaio
Médico Psiquiatra