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Perturbações da Personalidade vs Doença Unipolar e Bipolar
A personalidade é a forma de cada pessoa estar no mundo e de vivenciar os acontecimentos.
Pode definir-se personalidade como aquilo que distingue um indivíduo de outros indivíduos, ou seja, o conjunto de características psicológicas que determinam a suaindividualidade pessoal e social. É o conjunto de sentimentos, valores, crenças e atitudes que se manifestam em relação com o mundo e que emanam daindividualidade.
A formação da personalidade, contudo, é processo gradual, complexo e único a cada indivíduo.
A personalidade resulta do mecanismo psicológico que articula as emoções, os impulsos e as motivações de natureza instintiva com a própria corporalidade e com o mundo externo. A forma satisfatória com que tal articulação é feita determina a normalidade da personalidade. A normalidade da personalidade depende tanto da individualidade do sujeito como dos objectos que precocemente estão “presentes”. Naturalmente que uma “insuficiente” ou “desadequada” resposta dos objectos poderá levar a um “aumento” de um determinado “traço” de personalidade.
Com efeito, a qualidade das relações precoces e o processo de vinculação mãe – filho, e mais tarde a qualidade e complexidade das relações com os outros “objectos” parecem ser fundamentais na estruturação e organização da personalidade. O processo de autonomia, de socialização, de construção de valores e da própria auto-estima irá influenciar de forma determinante, embora não imutável, a forma de estar no mundo.
Quando as características da personalidade levam a uma desadaptação funcional e/ou a sofrimento, estaremos em presença de uma perturbação da personalidade.
No estudo da depressividade importa distinguir a pessoa com personalidadedepressiva, ou outra perturbação da personalidade, da pessoa com perturbação unipolar ou bipolar.
Na depressão propriamente dita aconteceu a perda. Perda do objecto mas também de parte do eu. Perda objectal + perda narcísica.
Na perturbação depressiva da personalidade (“estrutura depressiva”) não há perda, mas falta. O que acontece é a inviabilidade do amor fantasiado. Não existe perda do que nunca se teve.
Poderá, contudo, existir perda do que se imaginou ter. A idealização do objecto irá determinar o grau de insatisfação e mesmo o desejo da perda do objecto idealizado, a que se associará a perda culposa.
De uma forma geral podemos dizer que na “estrutura depressiva” existe uma falta do desejado.
Na sua génese a personalidade depressiva relaciona-se com acontecimentos mais precoces que a doença depressiva.
Na personalidade depressiva acontece uma internalização do mau-objecto e a sua projecção no ambiente pode facilmente levar a reacções paranoides persecutórias. Por outro lado uma retracção narcísica com apagamento dos laços afectivos objectais, pode levar o indivíduo a um afastamento da realidade absorvendo-se em pensamentos mágicos ou em investimento pelas coisas (em vez das pessoas).
Na doença depressiva há um reinvestimento narcísico muito fixado em objectos internos. Surgem o pensamento poético e a criação artística na sua concepção clássica.
O doente depressivo tende a não consubstancializar as sua relações afectivas, a não vivê-las até ao limite com receio da perda. Não se permitindo amar de forma inteira não faz lutos mas depressões. É um eterno apaixonado por um passado idealizado que não deixa que o presente aconteça.
Na personalidade depressiva, a carência de um bom abjecto securizante narcisicamente, pode levar a um “vazio” permanente. Quando o investimento narcísico se faz por identificação à figura materna “cria-se” uma homossexualidade latente ou não, mas insatisfatória.
Por vezes a perturbação da personalidade pode ser mais grave e haver um vazio interior com “erosão narcísica” que leva a movimentos compensatórios. Tais movimentos visam sobretudo evitar o abandono. A clivagem afectiva que leva à “bipolarização” – bom e mau objecto, leva a movimentos de idealização e de desvalorização do objecto. Nada escapa a estas personalidades que têm de “experimentar” tudo e todos.
De facto, a DSM-IV enuncia os critérios para o diagnóstico de Perturbação limite da personalidade do seguinte modo:
”Padrão global de instabilidade no relacionamento interpessoal, auto-imagem e afectos, e impulsividade marcada com começo no inicio da idade adulta e presente numa variedade de contextos, como por 5 (ou mais) dos seguintes:
- esforços frenéticos para evitar o abandono real ou imaginado;
- um padrão de relações interpessoais intensas e instáveis, caracterizadas por alternância extrema entre idealização e desvalorização;
- perturbação da identidade: instabilidade persistente e marcada da auto-imagem ou do sentimento de si próprio;
- impulsividade pelo menos em duas áreas que são potencialmente autolesivas ( gastos, sexo, abuso de substâncias, condução ousada, ingestão alimentar maciça).
- comportamentos, gestos ou ameaças recorrentes de suicídio ou de comportamento automutilante;
- instabilidade afectiva por reactividade de humor marcada (p. ex. : episódios intensos de disforia, irritabilidade ou ansiedade…)
- sentimento crónico de vazio;
- raiva intensa e inapropriada ou dificuldades de a controlar (p. ex.: episódios de perda de calma, raiva constante, brigas constantes);
- ideação paranoide transitória reactiva ao stress ou sintomas dissociativos graves.”
Tais critérios incluem uma nítida sobreposição à sintomatologia bipolar.
Existe na personalidade limite uma alternância nas relações. Tais pessoas manifestam alternadamente
sentimentos de paixão e de ódio pelos que lhe são próximos. Uma alternância entre uma apatia (oriunda de uma anulação afectiva) e uma hiperactividade maniforme em busca de estímulos que lhes emprestem uma ideia de existência, pode induzir ao diagnóstico de Doença Bipolar.
É o perfil da historicidade destas pessoas que nos dá o diagnóstico diferencial. Naperturbação grave da personalidade o que é permanente é a instabilidade na identidade, na falta de coerência externa e interna, na ausência de um projecto existencial e na ausência de uma orientação.
Na doença bipolar as alterações do comportamento enxertam-se numa identidade e num projecto pessoal, que é prejudicado pela doença.
É assim, na aproximação à individualidade que se consegue distinguir as duas perturbações.
Dr. António Sampaio
Médico Psiquiatra